quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

FALANDO DE FILMES

Fernando Meirelles discute carreira e veia de cinéfilo por meio de filmes que considera tocantes e transformadores

Durante a 34° Mostra Internacional de Cinema, o diretor Fernando Meirelles participou do encontro Os Filmes da Minha Vida. Nele, Meirelles falou um pouco sobre a carreira e os filmes que o influenciaram e aqueles que o emocionaram. Nascido em São Paulo, ele cresceu no bairro Alto de Pinheiros, que ficava e ainda fica muito afastado de salas de cinema. Aos 55 anos, ele é da geração que cresceu assistindo a televisão. “O cinema não fez parte da minha vida como fez para pessoas mais velhas que eu”.

O pai do diretor tinha o costume de fazer filmes caseiros em 8 mm, que eram depois assistidos por Meirelles. “A ideia de cinema para mim sempre significou diversão. Mais do que assistir a filmes era fazer filmes. Cresci com a ideia de que cinema era uma grande brincadeira, mais do que uma forma de expressão”.

PRIMEIRO CONTATO
As primeiras lembranças do cineasta são segundo ele, muito desagradáveis. Ele recorda de Casinha Pequenina. “No dia em que fui ver o filme tinha um bêbado sentado ao meu lado. Numa cena, um escravo apanhava. Eu comecei a me sentir mal com a cena e o cheiro de bebida. Toda vez que sinto hálito de álcool me dá uma sensação desagradável. É muito claro o sentimento. O hálito de bêbado me desperta a dor de 'Casinha Pequenina'”.

Na escola, Meirelles ao ter de realizar um trabalho, teve contato com o cinema canadense, em especial com o trabalho de Norman McLaren. Ele cita o curta-metragem "Neighbours". “O filme foi feito quadro a quadro. Norman pedia para os atores pularem e tirava uma foto disso. Os personagens não tocavam o chão. Esse filme me impressionou tanto que depois eu consegui uma câmera super 8 e fiz uma cópia dele. O primeiro filme que fiz na vida foi uma coisa chupada (risos)”.

Em 1975, Meirelles começou a cursar arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Lá ele passou a integrar o cineclube, mas sem nenhum interesse em especial. O estudante ficava responsável pela seleção dos títulos. Nos anos 70 não existia VHS e para se assistir a filmes clássicos havia apenas dois ou três cinemas em São Paulo que ficavam reprisando esses filmes. Meirelles frequentava o Cine Biju e o Belas Artes.

No cineclube, um dos alunos conseguiu exibir dois filmes de Werner Herzog: "Os Anões já Nascem Pequenos" e "Fata Morgana". Esses filmes impressionaram Meirelles. “Eu estava acostumado com o cinema americano narrativo e esses pareciam sonhos. Imagens e sensações intrigantes, mas não se entendia aquilo. Não importa se você não entende, mas a impressão que causa é tão forte que é isso que vale”.

INFLUÊNCIAS
Dois cineastas brasileiros foram responsáveis por influenciarem a forma de Meirelles filmar: Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. “Minha vontade de fazer cinema foi por causa deles”. Do primeiro, ele cita "Copacabana Mon Amour"; "Sem Essa, Aranha" e "O Bandido da Luz Vermelha". Do segundo ele menciona "Memórias de um Estrangulador de Loiras"; "Cuidado, Madame!" e "Matou a Família e Foi ao Cinema". “O que eu gostava nessas produções é que o processo de fazer o filme estava incluído dentro dele. Os diretores tinham liberdade total para narrar e colocar elementos nos filmes. Uma coisa que o Bressane faz muito e que eu cheguei a imitar muito em alguns curtas que eu fiz, foi a manipulação explícita da cena. Ele foi o meu grande professor na forma de como se pode usar elementos para se contar uma história”.

Sganzerla e Bressane foram os cineastas influenciadores de Meirelles, mas o fator determinante para fazer dele um realizador de cinema, foi o filme "Iracema, uma Transa Amazônica". Este docu-drama acompanha um motorista de caminhão que percorre a Amazônia, revelando os problemas com a construção da Rodovia Transamazônica.

Na Escola de Comunicação e Artes (ECA) havia a exibição de filmes brasileiros. Meirelles sempre ia a essas sessões e uma delas foi de "Iracema". “Quando acabou a projeção eu fiquei chocado. Todo mundo saiu da sala e eu fiquei lá. Esse é um filme transformador! Eu lembro bem de descer uma das escadas da ECA e decidi que queria fazer um filme. Não pensei que isso pudesse ser uma profissão. Estava no quarto ano da faculdade de arquitetura e precisava fazer a minha monografia de graduação. Se eu não o tivesse assistido minha tese teria sido o projeto de um hospital e eu estaria hoje trabalhando com arquitetura”.

Com o pé no campo cinematográfico, Meirelles fez uma longa carreira na televisão, dirigindo comerciais. “Se eu pegar os 700 comerciais que fiz nos anos 80 até meados de 90, eu sei exatamente o filme que assisti na semana anterior ao trabalho do comercial. Eu copiei Kurosawa, Saura, copiei todo mundo. Se tivesse o prêmio de chupador da história, seria para mim (risos). Esse meu fascínio por “plagiar” não é algo ruim, é trabalhar algo já trabalhado e tirar algo disso. Você realmente aprende”.

O primeiro trabalho no cinema de Meirelles foi em 1983 com o curta "Marly Normal". No território do longa, "Domésticas" (2001) foi a estreia e depois vieram "Cidade de Deus", "O Jardineiro Fiel", "Ensaio Sobre a Cegueira" e "Som e Fúria - O Filme". Como produtor executivo ele participou de "Lixo Extraordinário", que estreia no dia 21. Outro longa produzindo por ele é 'Vips" que estreia em 25 de março. Desta filmografia, "Cidade de Deus" foi qual marcou a carreira de Meirelles.

CIDADE DE DEUS
A história de dois meninos, Buscapé e Dadinho e a maneira como eles vão seguir as suas vidas no cotidiano marginal na favela, é o mote de "Cidade de Deus". Buscapé trabalha em um jornal como fotógrafo e foca na lente de sua câmera, a violência que o cerca. Dadinho, mais tarde conhecido como Zé Pequeno se rende ao crime. Meirelles declara que tudo o que aprendeu na década de 70, foi colocado em "Cidade de Deus". “Talvez o filme tenha funcionado porque tem tanta ideia filtrada. As experiências que fui tendo, fui guardando”.

Iracema, que foi um filme transformador na vida de Meirelles também foi um que o influenciou na hora de realizar "Cidade de Deus". “A mistura de ficção com realidade, usar ator e não profissional... De cara achei que não usaria ator, no máximo dois ou três atores profissionais para dar o mesmo efeito”.

Na forma de contar a história do filme, ele bebeu na fonte de Michelangelo Antonioni ("Zabriskie Point") e de Martin Scorsese ("Os Bons Companheiros"). “Eu gosto muito de 'Zabriskie Point' porque eu aprendi o poder de se fazer escolhas no set”. Quanto a "Os Bons Companheiros", ele não sabe “se foi consciente ou inconscientemente, mas 'Cidade de Deus' tem uma estrutura narrativa muito parecida com esse filme”.

MEIRELLES POR MEIRELLES
Quando o assunto é os filmes que tocaram o espectador e não o diretor, Meirelles se emociona ao lembrar de "Sonata de Outono" e elege uma cena desta produção, a sua favorita. A sequência mostra Eva (Liv Ullmann) tocando piano. A mãe mostra como se deve tocar direito. Mesmo com as melhores das intenções a mãe destrói a filha naquele momento. “Cada vez que eu vejo essa cena... ela é tão poderosa, tão sintética, é nada. É apenas uma câmera parada, só se vê dois rostos e para mim ela conta tanta história. No rosto da Liv passa tanta coisa. Foi a partir desse dia que eu entendi o poder do ator, como que com o nada você pode fazer muito, como que é desnecessária essa parafernália que a gente usa hoje”.

Documentários também integram a lista dos filmes favoritos de Meirelles como, "Ricardo III - Um Ensaio", "Corações e Mentes" e "Pro Dia Nascer Feliz". Ele comenta sobre este último que trata da situação do sistema educacional no Brasil. “Eu não sou de chorar com filme, mas esse eu lembro de chorar convulsivamente no cinema em dois ou três pontos do filme. Eu despenquei! O momento em que eu me acabei foi no fim do filme que mostra uma garota de Pernambuco que escreve muito bem. Tem uma hora que ela fala: ”quando eu faço uma redação eu guardo pra mim e pra professora eu ponho alguns erros, porque se eu entregar a que eu faço ela fala que não fui eu e me dá zero porque eu não sou capaz de fazer aquilo”. Isso me deu uma tristeza e acabou comigo. É um filme muito emocional”.

Para Meirelles o fascinante do cinema é o fato dele ser um sonho, “não um sonho normal, mas um sonho compartilhado. O interessante é que gostamos mais quando assistimos a um filme com muitas pessoas. A ideia parece que é viver uma catarse compartilhada. Todas as culturas têm um rito. Tem alguma coisa na nossa cabeça que gosta da experiência coletiva. Você se apaixona e sofre junto”.

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